A paz reside no sorriso de uma criança

Partilhar este conteúdo

“Nós as crianças não queremos mais medo,

Queremos brincar à cabra-cega e à bola,

Ter alegria, amor e ternura”

Fernando Luís, músico moçambicano.

No dia 1 de Junho comemoramos o Dia Internacional da Criança. Em Moçambique, comemoramos esta importante data pela 47ª. vez, coincidentemente os mesmos anos da nossa Independência Nacional. A efeméride assinalou-se pela primeira vez em 1950, por iniciativa das Nações Unidas, com o objectivo de chamar a atenção para os problemas que as crianças enfrentavam. Nesse dia, Estados-Membros reconheceram que todas as crianças, independentemente da raça, cor, religião, origem social, País de origem, têm direito a afecto, amor e compreensão, alimentação adequada, cuidados médicos, educação gratuita, protecção contra todas as formas de exploração e a crescer num clima de paz e fraternidade.

Como tem sido habitual, cada comemoração tem como pano de fundo um lema específico. Este ano o lema escolhido é “a paz reside no sorriso de uma criança”. Não obstante o reconhecimento do valor em torno da escolha dos lemas cada vez que se comemora a efeméride, a questão de fundo que teima em vir à superfície é e tem sido, o quanto fazemos e temos feito para traduzir o lema ou slogan numa realidade na vida das crianças que clamamos servir e proteger? Até que ponto tudo quanto temos feito tem resultado no sorriso de cada criança deste Moçambique martirizado? Para que crianças a paz deve residir, de modo que o sorriso da criança não seja uma celebração efémera, mas uma constante no seu dia-a-dia?

Ao celebrarmos e observarmos o sentido do dia 1 de Junho, dificilmente o faremos sem fazer pequena referência, por mais pequena que seja, às crianças de Cabo Delgado. Crianças que não celebram o dia 1 de Junho há mais de 2 anos, quiçá, que vão se esquecendo do sabor e fantasias de ser criança. Como disse um articulista no jornal a Carta do dia 16 de Junho de 2020, “as casas foram queimadas. As bonecas esfoladas. A nossa inocência molestada… Não sabemos até quando teremos que esperar para honrar as almas dos nossos irmãos decapitados em Xitaxi, explodidos no Ibo e esquartejados em Bilibiza”. Como a paz pode residir no sorriso destas crianças de Mocímboa, Quissanga, Macomia, Muidumbe? Quantas crianças andam por aí, perdidas, desesperadas perplexas perante tamanha barbárie que passou a ser mais regra do que excepção em muitas vidas dessas crianças?

As perguntas são muitas e, como afirmámos nos parágrafos anteriores, o vazio dos lemas ou slogans tem tomado conta de nós, esvaziando cada vez mais a esperança que depositámos no resultado das nossas acções que afirmamos serem no melhor interesse da criança. As respostas a estas e outras perguntas pecam por tardar a chegar, pecam por saberem a pouco e, em muitas situações, pecam mais por serem efémeras.

Este ano, para alem de comemorarmos o 47º. Dia 1 ao nivel do País comemoramos o 47º. Ano da Independência Nacional, 25º. Aniversario do Relatório da Graça Machel (1996) ao Secretario Geral das Nações Unidas sobre o Impacto do Conflito Armado sobre as Crianças. Ao assinalarmos o 25º. Aniversario do Relatório da Graça Machel, fazemo-lo num contexto mundial em que mais de 264 milhões de crianças vivem em Países ou áreas afectadas por conflitos armados e num mundo em que, desde 2005, mais de 250,000 violações graves contra as crianças em conflitos armados indicam que:

  • Mais de 77,000 crianças foram recrutadas e usadas como soldados
  • Mais de 100,000 crianças assassinadas e mutiladas
  • Mais de 15,000 crianças estupradas e violadas sexualmente
  • Mais de 25,000 crianças raptadas
  • Quase 17,000 ataques às escolas e hospitais
  • Quase 11,000 incidentes de recusa da assistência humanitária e
  • Há indicações de que, nos últimos três anos, 37,000 crianças foram libertas das forcas armadas ou grupos armados em 19 Países.

Em Moçambique, para que a paz volte a residir no sorriso de cada criança, precisamos de reverter estes números da vergonha e da desgraça, em números de bens e serviços, de investimentos e acções de apoio psicossocial e de resiliência, habilidades para a vida e combate a todas as formas de violação dos direitos das crianças.  Fazendo jus ao lema deste ano e à inquietação perante o malogro das nossas intenções, 14 anos depois do lançamento da Lei 7/2008 e 7 do estabelecimento dos padrões mínimos, o PQG 2020-2024 volta a enfatizar a aposta na implementação dos padrões mínimos de atendimento à criança (educação, saúde, protecção legal, alimentação e nutrição, apoio psicossocial, habitação e fortalecimento económico). O mesmo documento, aposta na prevenção e combate às uniões prematuras, ao abuso sexual, aos raptos e exploração do trabalho infantil.

Como organização da sociedade civil cujo papel é, por um lado, complementar as acções do governo respondendo às necessidades prementes dos mais vulneráveis e, por outro lado, desafiar políticas e práticas que não concorrem para a prestação dos serviços públicos de qualidade a todos, independentemente da raça, cor, religião, origem social,  etnia, sexo e orientação sexual, saudamos as intenções e acções do Governo e, encorajamos para que, no cerne das suas acções, sejam colocados em primeiro lugar, o primado da Lei, a responsabilidade, a prestação de contas e, acima de tudo, o melhor interesse da criança.

É assim que, ao comemorar o Dia Internacional da Criança e a Quinzena da Criança sob o no lema “a paz reside no sorriso de uma criança”, a FDC fá-lo com a convicção de que, pouco a pouco, com acções de advocacia associadas às acções de protecção e implementação dos padrões mínimos, do resgate das meninas das uniões prematuras, das gravidezes precoces e indesejadas, da infecção pelo HIV e da malária, da fistula obstétrica, da recorrência a comportamentos de riscos face à pobreza extrema, da desnutrição crónica e da desistência escolar, estarão criados os alicerces para que o sorriso das crianças volte a luzir.

Em Cabo Delgado, especificamente em Mueda e Montepuez, com alguns recursos mobilizados, a FDC apoia mais de 18,000 crianças deslocadas, dentre as quais crianças órfãs, com deficiência, separadas e não acompanhadas. Mais de 3,000 crianças frequentam espaços seguros onde desfrutam de novo o prazer de ser criança, 124 crianças foram encaminhadas às suas famílias de origem.  Estamos conscientes de que há muito ainda por fazer e, por isso, não pouparemos esforços para mobilizar cada vez mais recursos técnicos, financeiros e materiais para restituir a esperança e dignidade a mais crianças cujas identidades e necessidades ainda precisamos de apurar.

Terminamos saudando a todas e todos os activistas sociais, líderes das organizações religiosas e da sociedade civil, trabalhadores sociais, professores e enfermeiros que têm dado a sua vida e seus saberes para as crianças de Cabo Delgado e de Moçambique em geral, ‘não tenham mais medo, voltem à escola e voltem a brincar à cabra-cega e à bola e, acima de tudo voltem a ter alegria, amor e ternura’ como o Fernando Luís cantou há décadas. Queremos lembrar a todos que, a crise em Cabo Delgado é acima de tudo uma crise protecção que requer esforços de todos a todos os níveis. O melhor interesse da criança deve ser o lema em todas as nossas acções e, a liderança das instituições especializadas, tais como Ministério do Género Criança e Acção Social, deve traduzir-se em apoios substanciais às crianças em risco ou vítimas das seis violações graves.